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O compositor russo Dmitri Shostakovich levou uma vida de ficção. Foi menino prodígio, queridinho do regime comunista, autor de “caos em vez de música”, desafeto de Stalin, grande herói da União Soviética, formalista burguês, vítima da burocracia, marionete de Stalin, porta-estandarte da sociedade socialista, camarada de Khrushchov, membro relutante do PCUS e, por fim, em suas polêmicas memórias, dissidente sutil.
O romancista inglês Julian Barnes seria massacrado se simplesmente tivesse inventado um personagem de baixos tão baixos e altos tão altos, capaz de criar algumas das obras-primas do século XX, como a sinfonia dedicada à sua Leningrado natal, sitiada pelo agressor nazifascista e faminta de morte. Porém, Shostakovich de fato viveu tanto o papel de cético quanto o de pau-mandado. Às vezes, num mesmo episódio.
Em livros anteriores, como o clássico "O papagaio de Flaubert" ou o recente "Altos voos e quedas livres", Barnes já havia demonstrado interesse pelos terrenos que nunca foram ocupados pelos historiadores, mas que se oferecem à exploração dos ficcionistas. A discrepância entre algumas passagens da vida de Shostakovich e o modo como foram reinterpretadas nas memórias ditadas a Solomon Volkov haveria de lhe ser irresistível. Portanto, parece até natural que Barnes tenha escrito este angustiante O ruído do tempo.
Barnes parte da autobiografia terceirizada e de histórias bem documentadas sobre Shostakovich para especular sobre o que se passava na cabeça do compositor. O que o romancista encontra no que chama de “três conversas com o poder” – três solilóquios, em 1936, 1949 e 1960 – é um “coelho aterrorizado”. Shostakovich tem medo dos expurgos de Stalin, medo do ridículo internacional, medo de dizer não a Khrushchov. Tem medo, sobretudo, porque o pessimismo é visto como uma tendência contrarrevolucionária. A imagem do homem insone, de pé, maleta pronta diante do elevador, à espera da chegada da polícia, funciona como símbolo do século XX.